VITÓRIA | Risco social: pessoas em situação de rua relatam trabalho na infância
Se você faz coro com pessoas que acham que não tem nada demais uma criança ou adolescente trabalhar – empurrando carrinho nas feiras livres ou vendendo amendoim, fazendo malabares nos semáforos para ganhar uns trocados ou, simplesmente, trabalhar em “casa de família” para ajudar nas despesas da casa” – saiba que eles têm grandes chances de ser uma pessoa em situação de rua no futuro.
Acha que é um exagero essa afirmação? Então, você precisa saber o que revelou a pesquisa inédita feita pela Gerência de Proteção Social de Alta Complexidade da Secretaria de Assistência Social (Semas) de Vitória. De acordo com a pesquisa, 82,9% das pessoas em situação de rua, que estão nos espaços de acolhimento institucional de Vitória, foram criança ou adolescente em trabalho infantil.
O levantamento mostrou outro dado ainda mais alarmante: desse total, 24% estavam trabalhando quando tinham entre 5 e 8 anos de idade ; 41% tinham entre 9 e 12 anos; e 35% deles começaram a trabalhar entre 13 e 16 anos.
A pesquisa apontou ainda que 60,4% dessas crianças e adolescentes foram obrigadas ao trabalho infantil devido à condição de extrema pobreza vivida pelas famílias, enquanto que 15,5% deles foram para o benefício próprio e 22,5% não tinham um motivo.
O levantamento revelou que os adultos em situação de rua de hoje não tinham consciência de que o que faziam era trabalho infantil e, também, desconheciam os riscos de estarem naquela situação de exposição nas ruas.
Entre as pessoas ouvidas, 78,4% não conseguem associar que estarem nas ruas quando criança e/ou adolescentes em trabalho infantil colocou às ruas como opção, quando as coisas apertaram dentro de casa ou conflitos familiares pareceram difíceis de resolver.
Trajetórias
Durante entrevista com os acolhidos no Abrigo Institucional de Adultos e Famílias, mais conhecido como Abrigo 1, a associação ao que realmente é o trabalho infantil começou a ser feita enquanto fluía a conversa e as fisionomias se tornaram de pessoas reflexivas e até de entristecidas. Foi o caso de R. C. C. S., de 62 anos, que está em acolhimento no espaço.
Ela contou que aos 12 anos foi obrigada a trabalhar na lavoura na região de Jabaquara, no município capixaba de Anchieta, para ajudar no sustento da família. “Meu pai tinha problemas de alcoolismo, não trabalhava. Minha mãe era sozinha para cuidar de tudo e dar conta dos cinco filhos. Meus irmãos foram trabalhar nas ruas e, eu trabalhava na roça e na casa de um senhor”, disse ela.
A situação de vulnerabilidade familiar e trabalhando em tempo integral, ir à escola ficou fora de cogitação. “Não tinha ninguém para me levar. Só estou tendo tempo de estudar agora, depois de velha. Mas, agora, é difícil entrar na cabeça. A falta de estudo atrapalhou arrumar um bom emprego. Sofri muito quando criança”, comentou.
O caso de R.R, de 35 anos, que desde os 28 anos está em situação de rua, é um exemplo ainda mais emblemático de que deixar criança ou adolescente nas ruas pode tornar o caminho de regresso ao lar muito complexo. R. contou que aos 14 anos, mesmo frequentando uma escola, passava a maior parte do tempo indo à praia ou na quadra do bairro com os amigos.
De tanto ficar nas ruas, os conflitos familiares foram se agravando e o vínculo com a família foi se distanciando na mesma proporção em que ia se ligando às pessoas em situação de rua na região em torno da Catedral de Vitória.
“Um dia encontrei com uma prima na rua e, aí fui ficando por lá. Não sai mais. É difícil sair. Eu ia para casa, mas estava com o vício da rua. Bate aquele espírito de andarilho e a vontade de estar com os meus amigos, que estão lá na cidade Alta, ou na rodoviária ou debaixo da ponte”, contou ele.
Ao ser questionado com quem tinha mais contato (com os pais e irmãos ou os amigos da rua), R.R. é rápido na resposta: “Ah, com eles (os amigos, né). Sinto falta da minha mãe, mas tenho mais contato com eles. Não dá para ficar muito em casa, por causa de uns conflitos”. Perguntado se não valeria a pena resolver os problemas dentro de casa, R. sinaliza que não. “Estar em casa é bom, mas dá vontade de ir para a rua. A gente se acostuma e não consegue ficar “preso” dentro de casa. É difícil ate ficar aqui (referindo-se ao Abrigo 1). Mas, aqui, estou tentando. Já tem 17 dias. Quero mudar para conseguir um emprego, trabalhar, ter minha casa e ter minha filha por perto”, falou R.R.
Combate
A gerente de Proteção Social de Alta Complexidade, Anacyrema Silva, enfatiza que esses relatos ilustram bem a problemática do trabalho infantil. “Demonstram que temos que levar em consideração toda a trajetória da pessoa em situação de rua para atuarmos para que ela supere essa condição. E que é preciso reforçar o combate ao trabalho infantil junto à sociedade”, alertou ela.
Para a secretária de Assistência Social, Cintya Schulz, a pesquisa reforça a importância das políticas da Assistência Social e, principalmente, das ações de todas as políticas públicas na garantia e proteção dos direitos em todas as fases da vida. Ela frisou o acerto da gestão em concentrar esforços na erradicação da extrema pobreza no município, com a implantação do Vix .+ Cidadania, e de combate à fome – com as intervenções para a reabertura do Restaurante Popular o trabalho do Banco de Alimentos e doação de cestas para as famílias em situação de mais vulnerabilidade.
foto Guiomedce Paixão