Entrevista com o professor Carlos Alberto Faraco

today14 de agosto de 2014
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Carlos Alberto Faraco – Professor Titular (aposentado) de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná. Fez parte da Comissão que, em 2007/ 2008 assessorou o governo federal no processo de implantação do Acordo Ortográfico de 1990 no Brasil. Atualmente é o Coordenador-Geral da Comissão Nacional Brasileira do Instituto Internacional da Língua Portuguesa da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Em 2008, um decreto presidencial introduziu na ordem jurídica nacional o Acordo Ortográfico de 1990. A adaptação às normas do Acordo teve inevitável custo econômico para a indústria do livro. Qual a situação atual da implantação do Acordo no Brasil e nos demais países de língua oficial portuguesa?

CAF – O Acordo Ortográfico de 1990 está integralmente implantado no Brasil; está em avançado processo de implantação em Portugal (que estipulou maio de 2015 como o prazo final para sua vigência definitiva); e em processo inicial de implantação nos demais países que já o ratificaram. Falta ainda a ratificação em dois países – Angola e Moçambique.

Em Moçambique, o processo está mais avançado porque o Conselho de Ministros recomendou ao Parlamento sua ratificação e se acredita que ela será feita ainda na presente legislatura. Em Angola, a questão deve avançar em breve, considerando que os problemas apontados por linguistas angolanos estão sendo equacionados à medida que se elabora o Vocabulário Ortográfico Comum, coordenado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa, órgão da CPLP a que cabe o trato técnico das questões linguísticas de interesse multilateral.

O Acordo de 1990 precisa ser rediscutido?

CAF – Não há nenhuma razão plausível para se defender uma rediscussão do Acordo. Seus objetivos estão sendo alcançados e o próprio processo de sua implantação, já bastante avançado, deixa claro que não há necessidade de rediscutir os termos acordados em 1990.

Mas alega-se que o Acordo é omisso em alguns pontos e tem outros pontos mal redigidos.

CAF – O Acordo, como qualquer texto legal, é omisso em alguns pontos (não define, por exemplo, critérios para o aportuguesamento ortográfico de palavras incorporadas de outras línguas) e tem pontos que exigem interpretação (os casos, por exemplo, em que se apresentam algumas exceções às normas gerais devem ser lidos de forma categórica ou facultativa? Ou seja, a exceção é uma grafia obrigatória ou apenas alternativa à grafia prevista pela norma geral?).

Tudo isso está sendo devidamente equacionado na elaboração do Vocabulário Ortográfico Comum, sob a coordenação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa da CPLP. Interessante observar que na maioria absoluta dos casos há grande coincidência entre as diferentes equipes de especialistas dos vários países quanto ao modo de resolver esses problemas. É importante lembrar que o Acordo não aboliu a tradição ortográfica construída ao longo de séculos.

Assim, muitas questões podem ser facilmente resolvidas com apoio na tradição, como aliás já recomendava Fernão de Oliveira, o primeiro gramático da língua, no século 16. Importante também lembrar que o Acordo de 1990 não foi um fato isolado, mas o ponto de chegada de estudos e negociações que começaram na década de 1920 sempre com o mesmo objetivo – não o de reformar a ortografia (as bases fixadas em 1911 nunca entraram em questão), mas o de fazer os necessários ajustes para que a ortografia do português ficasse submetida a um único conjunto de normas, abolindo a dualidade de ortografias oficiais – a lusitana e a brasileira, prejudicial às perspectivas de expansão da língua no contexto internacional.

O que é o Vocabulário Ortográfico Comum a que o senhor acaba de se referir?

CAF – O Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) é um instrumento de gestão da ortografia que foi previsto pelo Acordo Ortográfico de 1990. Como a ortografia do português, em consequência do Acordo, passou a ser gerida pelo conjunto dos países de língua oficial portuguesa, o texto do Acordo previu a elaboração de um Vocabulário Ortográfico que consolidasse a forma ortográfica das palavras não apenas de um país, mas do conjunto dos países.

Para sua execução, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) assinou um convênio técnico com o Instituto de Linguística Teórica e Computacional da Universidade de Lisboa e com a Universidade Federal de São Carlos. E constituiu uma equipe de consultores com especialistas dos países da CPLP.

O Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) já está pronto?

CAF – O VOC está em avançado estágio de elaboração. Já conseguimos, pela primeira vez na história da língua, unir numa só plataforma todas as bases léxico-ortográficas portuguesas e brasileiras. Só isso é já um magno acontecimento. Há, contudo, mais: o projeto do VOC está promovendo a elaboração de Vocabulários Ortográficos Nacionais onde ainda não havia nenhum. O de Moçambique e o de Timor-Leste estão prontos e já integrados ao VOC.

E os demais em andamento. A primeira versão consolidada do VOC será apresentada na próxima reunião dos Chefes de Estado e Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que vai se realizar em julho próximo em Dili (Timor-Leste). Boa parte desta versão já pode ser consultada gratuitamente na página do Instituto internacional da Língua Portuguesa (www.iilp.cplp.org).

Que importância tem o VOC?

CAF – Com o VOC, teremos à disposição não apenas uma referência comum e segura da ortografia, mas também um rol de acervos lexicais que vão permitir enriquecer substancialmente os dicionários da língua. Por tudo isso, o projeto do VOC tem recebido apoio institucional de importantes centros de pesquisa em processamento automático de línguas naturais, bem como recursos financeiros de diversas fontes como o Camões-Instituto da Cooperação e da Língua (Portugal) e o governo de Angola.

Segundo o decreto presidencial, o tempo de carência para a implantação do Acordo seria de 4 anos, vencendo em 31/12/2012. Em dezembro de 2012, a presidente prorrogou a carência por mais 3 anos. Essa decisão foi acertada?

CAF – Não, esta decisão foi um equívoco. O Acordo já está integralmente implantado no Brasil. Não havia qualquer razão para prorrogar seu prazo de carência. Parece ter ocorrido por insistência de alguns senadores que, segundo noticiou a imprensa, queriam que o Brasil fizesse um gesto de gentileza para com Portugal, onde o prazo de carência do Acordo vence em maio de 2015. Infelizmente, a decisão foi tomada sem que se consultasse a Comissão que assessorou o governo federal em 2007/8 no processo de implantação do Acordo no Brasil.

Isso teria evitado o que acabou sendo um vexame internacional para o Brasil. Demos um pretexto para que, nos demais países, houvesse muitos a duvidar de nossa seriedade no trato de questão tão complexa e delicada, quando o nosso processo de implantação (inclusive a definição do prazo de carência, que tomou, por razões óbvias, o calendário do Programa Nacional do Livro Didático como base) foi extremamente cuidado do ponto de vista técnico e político.

De qualquer forma, é importante não esquecer que qualquer retrocesso na implantação do Acordo no Brasil implicará enormes prejuízos para as editoras nacionais, além de incalculável e injustificável desperdício de dinheiro público, considerando que todos os milhões de livros do Programa Nacional do Livro Didático têm sido impressos, desde 2010, com a ortografia prevista no Acordo.

A Comissão de Educação do Senado constituiu um Grupo Técnico para apresentar propostas de simplificação da ortografia. Como avalia essa iniciativa?

CAF – Infelizmente, ao que tudo indica, a Comissão decidiu patrocinar uma reforma ortográfica “simplificadora” sem que se tenha dado espaço para o contraditório. Até onde se sabe, a Comissão não ouviu nenhum especialista na história da nossa língua e da nossa ortografia; tampouco ouviu representantes da indústria editorial; e também não ouviu nenhum dos educadores que se dedicam ao estudo do processo de alfabetização e letramento.

Se o ponto de vista contrário tivesse sido ouvido, teria ficado logo claro que o dissenso nessa matéria é muito maior do que qualquer consenso – o que é indicador suficiente para não se acolher propostas de reformas ortográficas, por mais bem intencionadas que pareçam ser à primeira vista. O dissenso é maior que o consenso por uma razão simples: os impactos econômicos, culturais e educacionais negativos sobrepujam em muito qualquer alegado benefício de uma “simplificação” ortográfica. Não sei onde os senadores querem chegar, mas, considerando os equívocos do ponto de partida, a bom termo não será com toda certeza.

Mas a ortografia do português não tem aspectos incongruentes?

CAF – Em matéria de ortografia, qualquer fenômeno apontado como “incongruência” é muito relativo. Incongruência em relação a quê? A ortografia é um complexo sistema de representação abstrata da língua e não uma forma de transcrevê-la diretamente. A transcrição direta (o que alguns chamam de “ortografia fonética” ou “sônica” ou “de acordo com a pronúncia”) é absolutamente impossível: a variedade de pronúncias de uma língua é tão grande que tomá-las como critério resultaria num caos ortográfico. Por isso, qualquer sistema ortográfico, para ser de fato funcional, precisa ser construído a uma boa distância da fala.

Por outro lado, qualquer sistema ortográfico é sempre compostonão com base num único critério, mas com base em múltiplos critérios. Há sempre um compromisso entre uma relativa transparência fonológica (uma determinada correspondência não de sons e letras, mas de fonemas e letras – os fonemas são unidades abstratas do sistema fonológico),uma dose de memória etimológica e certos padrões fixados por tradição.

No caso do português, a ortografia vem sendo construída há quase um milênio e carrega um pouco de cada um desses critérios, o que reflete diferentes momentos da nossa longa história cultural. Não há, portanto, “incongruências”, mas resultados diversos da multiplicidade de critérios envolvidos na construção histórica da ortografia. Nessa construção, diga-se de passagem, nenhum critério pode ser tomado como único.

Nem mesmo o da transparência fonológica porque, de um lado, a língua comporta mais de um sistema fonológico simultaneamente; e, por outro, a língua muda constantemente e a ortografia deve ser estável para que possamos ler textos escritos em diferentes lugares e tempos. Em todo esse debate, é importante também lembrar que a ortografia não existe apenas para termos um código comum para escrever as palavras. Ela é também guia para o processo de leitura. Uma reforma como defendem os “simplificadores” produziria um excessivo número de homógrafos, aumentando sensivelmente os custos cognitivos do processo de leitura. É também por isso indesejável.

Alega-se que uma simplificação ortográfica facilitaria a alfabetização, reduzindo inclusive seu custo. O senhor concorda com essa afirmação?

CAF – Este argumento não tem qualquer fundamento. Se a ortografia dificultasse a alfabetização, não teríamos como explicar os elevados índices de alfabetização que alcançaram sociedades em que se fala francês ou inglês, duas línguas que têm ortografias altamente complexas em razão da baixa transparência fonológica e do alto grau de imprevisibilidade.

Seria também difícil de explicar as grandes diferenças no índice de alfabetização entre países em que se fala castelhano (cuja ortografia é bastante regular). Como escreveu recentemente o linguista Marcos Bagno (em sua coluna na revista Caros Amigos), a realidade nos mostra que é preciso quebrar esse mito. Diz ele: “é a educação de qualidade que leva um povo a se apoderar de seu patrimônio letrado e a ser capaz de ler e escrever bem, independentemente do tipo de sistema de escrita empregado”.

Foto www.gazetadopovo.com.br

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